16 de dezembro de 2008

O AVANÇO DOS CRENTES - CAPA da revista VEJA em 1981- Será que mudamos em algo?


O avanço dos crentes

Sob a luz do Espírito Santo e
com um código que proíbe o fumo
e a bebida, o pentecostalismo já
converteu 8,5 milhões de brasileiros


O alagoano Manoel Raulino do Nascimento, de 46 anos, estivador no porto de Santos, fumava e bebia regularmente até a semana passada, quando ouviu a voz do missionário Manoel de Mello, fundador da Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo, num disco em que relata sua peregrinação por Jerusalém. Um brilho nos olhos, Nascimento avançou sobre um maço de cigarros, jogou-o sobre as brasas do fogão a lenha, agarrou a garrafa de cachaça sempre ao alcance da mão e entornou na pia seu conteúdo. Ele ficara impressionado sobretudo com a descrição do túmulo de Jesus Cristo, visitado pelo missionário durante os sete dias de jejum e oração a que se submeteu em Jerusalém. E resolveu incorporar-se ao rebanho de 8,5 milhões de pentecostais, ou "crentes", espalhados pelo país, segundo cálculos da Sociedade Bíblica do Brasil e da Confederação Evangélica do Brasil.

A conversão de Nascimento tornará algo mais árida sua vida terrena: ele terá de vestir o apertado figurino usado por seus companheiros de fé. Os pentecostais - que devem seu nome ao dia de Pentecostes, quando o Espírito Santo teria aparecido aos apóstolos na forma de línguas de fogo - não podem dançar, não vão ao teatro nem freqüentam sessões de cinema. Também não usam roupa de banho, lêem quase que exclusivamente livros religiosos, rezam pelo menos duas vezes ao dia e entregam à seita a que pertencem o dízimo - 10% seus rendimentos mensais. São muito severos na educação dos filhos e de um rigor absoluto no que se refere à fidelidade conjugal. Enfim, só admitem o sexo como instrumento de procriação.

Apesar dessa escassez de atrativos mundanos, o número de pentecostais tem acusado saltos espantosos nas últimas décadas - e é provável que os cálculos disponíveis no momento sejam amplamente superados pelos resultados do censo de 1980. Afinal, só a Igreja Evangélica Assembléia de Deus, a maior das diferentes seitas pentecostais catalogadas no país, pastoreia 2,5 milhões de fiéis. E a Igreja O Brasil para Cristo, a segunda em importância, guarda na sede nacional, em São Paulo, um fichário com 1 milhão de fiéis.

Ao pé da letra - Essa imensa família descende do minguado grupo de evangelizadores americanos que, em 1910, desembarcaram no município paranaense de Santo Antônio da Platina. " O povo achava que a gente não tinha a cabeça no lugar", lembra Maria Silveira Mascaro, filha de Felício Mascaro, o primeiro cidadão brasileiro convertido ao pentecostalismo. "Eles eram exóticos demais para preocupar as igrejas protestantes tradicionais", explica Waldo César, autor de "Urbanização e religiosidade popular" (Revista Vozes, n.º 7). Compõem o protestantismo tradicional - detectado no Brasil há 150 anos, a partir sobretudo da imigração alemã - batistas, presbiterianos, metodistas, episcopais, congregacionais e luteranos. Entre estes figura, por exemplo. o ex-presidente da República Ernesto Geisel.

Os crentes se consideram protestantes, mas diferem de seus irmãos de credo principalmente por interpretar a Bíblia ao pé da letra e entender que tudo o que ocorre de bom no mundo é obra do Espírito Santo. Os pentecostais acreditam na iminência da vinda de Jesus Cristo ao planeta, "para o estabelecimento de um reinado de 1.000 anos na Terra", e criticam o que chamam de "mundanismo" dos demais protestantes. Sua pregação parece ter dado certo desde o começo: dez anos depois do desembarque dos pioneiros evangelizadores em Santo Antônio da Platina, os pentecostais já haviam erguido cinqüenta templos em solo brasileiro.

A semente caiu em solo fértil. Os templos eram 267, em 1930; 912, em 1940; 1.929, em 1950; 4.583, em 1960; e 11.118 em 1970. Hoje, há 26.000 templos no país, mais de 1.000 deles em São Paulo. Nesse mesmo perímetro urbano da maior cidade do maior país católico do mundo, o Vaticano comanda só 353 paróquias e 400 igrejas e capelas. Os templos pentecostais são freqüentemente acanhados, quase sempre pintados de azul e branco, e ficam engastados na periferia das cidades. Multiplicam-se num processo semelhante ao da divisão celular: um pastor com espírito de liderança e algum carisma abandona uma igreja já consolidada, cuja liderança dividia com outros pastores, e funda seu próprio templo. Muitas prosperam também economicamente. A Igreja de Nova Vida, uma pequena seita, ergueu no bairro carioca de Botafogo um templo de sete andares, com refrigeração interna, mármore italiano e vagas na garagem para cinqüenta carros.

Empregadas exemplares - Em 1930, os pentecostais representavam apenas 9,5% dos protestantes brasileiros. Um recente levantamento do sociólogo Francisco Cartaxo Rolim, da Universidade Federal Fluminense, constatou que eles somam agora 70% desse total. Rolim descobriu, também, que a maioria dos convertidos não foi capturada ao protestantismo tradicional. Ele encontrou 57% de ex-católicos, 4% de antigos umbandistas, 3% de batistas, 2% não tinham religião anterior, 1% haviam sido espíritas e o resto saíra do próprio protestantismo. "Os pentecostais são, geralmente, pessoas que migraram do campo para a cidade", diz Haroldo Murá, 41 anos, editor do jornal católico A Voz do Paraná, de Curitiba, e um estudioso da religiosidade popular. "Na cidade, o camponês perde os amigos, os pontos de apoio, larga os tênues vínculos que o uniam ao catolicismo", pondera Murá. "Precisa de calor humano, de solidariedade. Assim, torna-se presa fácil dos valores pentecostais."

Convertidos à nova fé os crentes ampliam, no plano espiritual, a esperança de salvação e, no material, a chance de conseguir certos empregos. "As empregadas crentes são mais recatadas, não têm vícios, não saem à noite, não faltam ao serviço", depõe Lucy Dias de Lima, proprietária da Lovelucy, uma das mais procuradas agências de empregadas domésticas de São Paulo. Mas os templos das seitas vão progressivamente deixando de ser freqüentados apenas por vidas apagadas que subitamente se acendem com a luz divina. A Terceira Igreja do Evangelho Quadrangular, em Curitiba, hasteada no bairro de Água Verde, tipicamente de classe média, tem convertido profissionais liberais, médicos, advogados, engenheiros, funcionários públicos graduados e, de uns tempos para cá, juízes de Direito.

Um desses magistrados é Altair Costa Souza, 51 anos, cinco filhos, que acaba de se aposentar como titular da 4ª Vara da Família de Curitiba. Filho de católicos, ele se converteu ao pentecostalismo ao visitar ocasionalmente o templo da Igreja do Evangelho Quadrangular. Em 1980 foi sagrado pastor e, no início deste ano, abriu seu próprio templo. "Depois que aceitei Jesus como único e suficiente salvador", diz Souza, "nunca me faltou a paz." Ex-freqüentador de colunas sociais, o juiz hoje anda com uma Bíblia permanentemente a tiracolo e ganhou fama no Tribunal de Justiça por conseguir a maior média de reconciliações entre casais prestes a separar-se.

Animadores de auditório - Magistrados, de qualquer forma, são ainda poucos entre os crentes, um universo em que tanto fiéis como pastores têm geralmente modestíssima posição social. Aos pastores não se cobra diploma algum - basta que saibam ler e escrever. O resto fica por conta do Espírito Santo, que faz seus devotos compreenderem tudo quanto está dito na Bíblia e compensa eventuais deficiências culturais. Tecnicamente, o pastor figura no topo da hierarquia pentecostal, alguns degraus acima de presbíteros, diáconos e auxiliares leigos. O pastor goza de autonomia quase completa em seu templo e só está impedido de trocar-lhe a denominação, vendê-lo ou consagrar ministros. Essas são atribuições exclusivas da congregação estadual de cada seita, uma espécie de colégio de pastores. A liturgia tem pouca rigidez, circunstância de que se valem os pastores para comportar-se à maneira de animadores de auditório. São diálogos sempre previsíveis:

- Se Jesus é por nós... - sugere o pastor.

- Quem será contra nós? - devolve o rebanho.

Estabelecida a empatia, pastores e fiéis protagonizam surpreendentes happenings pentecostais. Falam línguas estranhas (o dom da "glossolália", conferido aos apóstolos em Pentecostes), às vezes inexistentes e ininteligíveis. Jogam-se no chão, incorporam e desincorporam demônios, e, sobretudo, contracenam em curas milagrosas.

Prioridade para os ciganos - Bíblia nas mãos, pregadores pentecostais se incorporam diariamente à paisagem das praças mais movimentadas das grandes capitais - os homens vestindo invariavelmente paletó e gravata, as mulheres sem qualquer pintura e metidas em vestidos fora de moda. Depois das praças, estão nos presídios os palcos favoritos dos pregadores. Até há dois anos, o ex-presidiário Sebastião Oscar, convertido à Igreja do Evangelho Quadrangular quando ainda estava na cadeia, era o único pregador pentecostal a visitar os 900 presos da Penitenciária de Piraquara, a 25 quilômetros de Curitiba. Agora, divide seu rebanho com cinco pastores de seitas concorrentes.

Os ciganos também têm prioridade nesse esforço de catequese. A Obra Missionária Cigana, fundada em Salvador pelo pastor Eraldo Alves dos Santos, já batizou - sempre por imersão, como manda a liturgia - quatro ciganos, os primeiros remanescentes dessa raça convertidos ao pentecostalismo na América do Sul. "Ao todo já contatamos uns 1.000 ciganos", calcula o pastor. Mais: até o fim do ano será lançada urna ofensiva destinada a "levar os ensinamentos de Jesus" a ciganos de Alagoas, Sergipe, Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná.

Essa ofensiva certamente recorrerá a programas de rádio, hoje o mais poderoso instrumento de evangelização usado pelos pentecostais. Há mais de 200 programas convencionais - em que um pastor reza e põe no ar "testemunhos" de curas - em pelo menos 100 emissoras de rádio de todo o Brasil. Mas começam a ser inovados, como já acontece na Rádio Continental do Recife. Em vez de sucessos do momento, a parte musical compõe-se de salmos, solos de harpa ou piano, hinos religiosos de cantores obscuros. Enfim, patrocinadores do gênero não costumam figurar na programação normal. Assim, fabricantes de cigarros e bebidas cedem espaço a patrocinadores com nomes tão evangélicos quanto os artigos que vendem: "A Trombeta de Sião", "Galeria Brilho Celeste" ou "Aurora do Céu".

Visões e profecias - O investimento que mais dividendos rende aos pentecostais, entretanto, é a doutrina da cura peIa fé. Algumas seitas, como a Igreja Deus É Amor, liderada pelo missionário David Miranda - "missionário" é o nome dado ao pastor que cria uma seita -, denunciam com espalhafato a possibilidade de curas divinas. Logo à entrada do templo da sede nacional da Igreja Deus É Amor, em São Paulo, há uma parede ornamentada por centenas de muletas e aparelhos ortopédicos.

Em todo culto pentecostal, há sempre um horário reservado aos chamados "testemunhos": qualquer fiel pode agarrar o microfone e relatar curas maravilhosas, visões e até profecias. "As pessoas que vêm aqui saram, engordam, progridem na vida, pagam mais comida para os outros", diz o garçom Manoel Nino Sobrinho, adepto da Igreja Deus É Amor, no Rio de Janeiro. Para o crente, a cura pela fé é algo tão singelo quanto reduzir uma dor de cabeça com a ingestão de uma aspirina.

Em 1974, a Igreja Deus É Amor preparou a inauguração de seu primeiro templo em Curitiba anunciando pela Rádio Marumby, a cada 15 minutos, "a falência dos hospitais de Curitiba após a nossa chegada". Naturalmente, nenhum hospital fechou por falta de pacientes; o que houve foi um áspero atrito com o Conselho Regional de Medicina e o arcebispo católico de Curitiba. Os crentes, na verdade, votam uma pesada desconfiança à ciência médica. Em junho passado, o pastor Luís Carlos Saladar, da Igreja Independente, foi expulso da Santa Casa de Misericórdia de Livramento, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, depois de pilhado na tentativa de convencer uma paciente a abandonar o hospital e recorrer ao "pronto-socorro do Espírito Santo".

Desencanto com o Concílio - A Igreja Católica acompanha com atenção e certa inquietude a escalada do pentecostalismo - uma cópia da pesquisa de Rolim, por exemplo, estacionou recentemente na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília - também porque, ao contrário dos protestantes tradicionais, a maioria das seitas pentecostais quer distância do ecumenismo vaticano. "O movimento pentecostal tem sido objeto de discussões em nossas assembléias-, informa dom Avelar Brandão Vilela, cardeal-arcebispo de Salvador e primaz do Brasil. O que mais intriga a CNBB é o fato de um número crescente de brasileiros, oriundos principalmente das classes menos favorecidas, entregar-se a seitas que considera à margem da realidade política, social e econômica do país.

"Os pentecostais afirmam que não é o homem que transforma a sociedade", diz Rolim. "Para eles, Deus é quem age no mundo. A sociedade se transformará se cada um se entregar a Jesus Cristo." Rolim detectou entre os católicos convertidos ao pentecostalismo um certo desencanto com a tendência que levou a Igreja Católica a colocar em segundo plano, depois do Concilio Vaticano II, a devoção aos santos, às velas, às procissões, enfim, alguns dos mais antigos símbolos da religiosidade popular. "O pentecostalismo supre essa ausência porque mexe com o lado emocional dos fiéis", constata Rolim.

Em 1976, o falecido professor Douglas Teixeira Monteiro, da Universidade de São Paulo, observou que a Igreja Católica enfrentava "uma situação de mercado onde tem que disputar fiéis em condições de igualdade. às vezes até de inferioridade, notadamente nos grandes centros urbanos". Os crentes, todavia, encaram com naturalidade o milagre da multiplicação dos fiéis. "A expansão pentecostal é um dos muitos sinais de que estamos nos aproximando do fim do mundo", interpreta o pastor Adão Garcia, da Igreja Evangélica Pentecostal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. "A Igreja Católica esqueceu a assistência espiritual."

Obediência à autoridade - É certamente um exagero deduzir que a Igreja Católica perde fiéis apenas porque se dessacraliza. Mas é incontestável que, num momento de crescente polarização política de bispos e padres, os pentecostais se multiplicam oferecendo exclusivamente as vantagens da vida eterna. A opção da Igreja Católica pelos pobres terá certamente reforçado a fé em grandes contingentes de praticantes da classe média. Mas, para muitos pobres, essa opção só adquire contornos práticos se lhes

dá vantagens materiais ou espirituais. É aí que a dessacralização católica, independente de seu conteúdo, torna fértil o campo dos pentecostais, pois o fato de um bispo defender os pobres não é suficiente para torná-los menos pobres. O pastor, ao contrário, oferece exclusivamente o reino dos céus, permitindo aos pobres pensarem que o dia de sua riqueza, mesmo em outra vida, está mais próximo.

O professor Áureo Bispo dos Santos, da Universidade Federal da Bahia, lembra que os pentecostais são historicamente obedientes à autoridade, seja qual for a ideologia dos detentores do poder. "Aceitamos poderes constituídos como divinos e não há contestação, apenas obediência de sua parte", diz Santos. De fato, até hoje nenhuma dessas seitas teve qualquer problema de natureza política com o governo brasileiro. Ao contrário: no Pará, após os últimos choques entre comunidades eclesiais de base e sacerdotes católicos com o governo, pastores da Igreja Assembléia de Deus têm aceitado de bom grado substituir padres cerimônias oficiais e em bênçãos a novas obras públicas.

O sucesso alcançado pelo modelo de evangelização pentecostal é tão evidente que já começa a influenciar algumas igrejas batistas e presbiterianas - e mesmo a Igreja Católica. Neste último caso, o modelo crente influencia sobretudo o Movimento de Renovação Carismática, surgido no começo da década de 60 na Universidade Católica de Notre Dame, nos Estados Unidos. Os "carismáticos", ou "pentecostais católicos", pregam "a renovação do uso dos carismas do Espírito Santo. Ao menos por enquanto, a hierarquia católica não os condenou. Os carismáticos começam a atuar em Campinas, São Paulo, sob a liderança do jesuíta Harold Rahm. Essa influência do pentecostalismo sobre outras religiões é ainda incipiente. Mas configura um indicador da força de uma igreja que, somadas todas as seitas nela incluídas, só é menor que a católica - e promete continuar crescendo.


fonte:http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/capa_07101981.shtml

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