26 de novembro de 2008

A divinização pastoral x demonização do crente



Antonio Carlos Barro e Jonathan Menezes


Apesar de que todas as evidências apontam para o contrário, todo ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus – imago Dei. Ter a imagem de Deus não significa ser como Deus, conforme propôs a serpente aos primeiros habitantes da Terra. Ter sido criado à imagem de Deus significa que o ser humano tem capacidade de exercitar alguns atributos que pertencem a Deus, tais como o amor, bondade, compaixão, misericórdia, e assim por diante. O exercício desses atributos não pode ser perfeito por causa da mancha do pecado no coração da humanidade.




Apesar de que todas as evidências apontam para o contrário, todo ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus – imago Dei. Ter a imagem de Deus não significa ser como Deus, conforme propôs a serpente aos primeiros habitantes da Terra. Ter sido criado à imagem de Deus significa que o ser humano tem capacidade de exercitar alguns atributos que pertencem a Deus, tais como o amor, bondade, compaixão, misericórdia, e assim por diante. O exercício desses atributos não pode ser perfeito por causa da mancha do pecado no coração da humanidade.

Nos tempos modernos temos presenciado um fenômeno estranho entre os evangélicos. Esse fenômeno tem duas vertentes. A primeira delas é a divinização do pastor ou do líder da igreja. Antes de outras considerações, voltemos no tempo por um pouco. No passado o pastor ocupava um lugar de destaque em sua igreja local, denominação e em sua cidade. Ele se ocupava principalmente em alimentar bem o seu rebanho, administrar a igreja, pregar, evangelizar e fazer visitas pastorais. O pastor era um sujeito pacato, trabalhador e cumpridor de suas obrigações. Não possuía grandes ambições, deixava que o conselho determinasse seu salário e morava na casa da igreja que servia também de ponto de apoio para os crentes que vinham ao centro da cidade. Era bem quisto por todos e gozava de respeito entre os seus concidadãos.

Com o passar dos tempos o pastor evoluiu (até para comprovar a teoria de Darwin, o que é uma ironia). A primeira evolução se deu quanto a sua auto-estima. Mudou a linguagem a seu respeito. O titulo de pastor ou reverendo ficou pequeno e já não cabia para nominar esse nobre filho de Deus. Outros títulos vieram e agora fazer parte do vocabulário do crente como se fosse à coisa mais comum do mundo: Apóstolo, primaz, bispo e bispa (sim até as mulheres foram agraciadas). Passou a ser referido como aquele que tem a autoridade, tem o cajado, o anjo da igreja, o ungido de Deus, o profeta de Deus, o mensageiro do Senhor e tantos outros.

Dessa auto-estima agora revigorada para uma opulência material foi apenas questão de tempo. Se nos idos da minha adolescência o pastor andava com seu Fusca, isso quando era pastor da igreja central, agora como filho do Rei ele não pode se contentar com menos do que uma BMW, uma Mercedes, ou outro carro que confira o status digno do cargo que ocupa. Com a auto-estima em alta, bens matérias fartos, o próximo passo foi o caudilhismo. Era inevitável. O pastor, antes aquele servo de todos, passa agora a ser senhor de todos (leia ou assista A Revolução dos Bichos). Ele manda e desmanda, dita ordens, impõe respeito com o seu cetro de ferro, diz quem pode namorar e com quem, quem vai casar e com quem, quando e onde. Autoriza viagens, decide qual casa o crente deve comprar, que carro dirigir, que escola colocar os filhos, com quais amizades deve romper.

O pastor assumiu o controle financeiro do seu crente, pede, ordena, exige que muito dinheiro seja dado na igreja justificando tudo em nome de Deus, do ministério, da evangelização, das almas que se perdem. Oferece em troca os favores divinos, as mansões celestes, o prazer terrenal, uma vida sem dores e sofrimentos. Aliás, isso é tudo o que um crente e qualquer outro ser humano desse tempo querem: uma vida cheia de vitórias, alegrias e triunfos, e, se possível, sem perdas ou sofrimento algum. Para Henri Nouwen, o cristianismo de nossos tempos procura desconectar-se completamente da realidade do sofrimento e da renúncia ou da vida abnegada. É um cristianismo que busca vitórias sem esforços. Almejamos, de acordo com Nouwen:

"Crescimento sem crise, cura sem dores, ressurreição sem cruz. Não é de admirar que gostemos de assistir a desfiles militares e de aplaudir heróis que retornam, operadores de milagres e recordistas. Também não é de admirar que nossas comunidades pareçam organizadas para manter o sofrimento à distância. As pessoas são sepultadas de maneira a disfarçar a morte com eufemismos e ornamentação rebuscada". (Transforma meu pranto em dança, p. 8).

Na visão de Nouwen, a maneira de Jesus é tão diferente. Ele não veio eliminar as dores, mas ajudar-nos a enfrentá-las com o realismo e a esperança que a vida nesse mundo requer, na perspectiva da graça e do amor de Deus, que padece junto com o sofrimento da humanidade. Isso está no Evangelho, não se trata de invencionice humana. Mas quem disse que o que é genuinamente do Evangelho atrai as pessoas de hoje, tão desejosas que estão de felicidade a qualquer preço? O pastor, sabendo bem disso, tem se transformado num contorcionista do "evangelho": torce, retorce, repuxa, e transforma a mensagem em algo mais bonito e aceitável, e ainda chama isso de "evangelho pleno". Mas "pleno" mesmo, só se for de fanfarronisse teológica ou de sinistrose diabólica.

O pastor divinizou-se, aceitou o oferecimento da serpente. Se o pastor é agora um ser divino, para que o seu "ministério" se realize ele não medirá esforços para demonizar o seu crente. O crente, há algumas décadas atrás, somente tinha olhos para a sua igreja, onde freqüentava com assiduidade a escola dominical, cultos, a reunião de oração da terça-feira à tarde e o culto da quarta-feira à noite. Havia ainda uns cultos evangelísticos nos lares, onde um presbítero ou diácono se encarregava de realizar os trabalhos.

Contudo, semelhantemente ao que ocorreu com o pastor, também o crente evoluiu. Deixou de ser aquela pessoa retrógrada, esquisita, que estava sempre evangelizando as vizinhas, que cumpria seus compromissos, que não comprava a prazo e, se comprasse, saldava suas prestações. Era respeitado como honesto, trabalhador e pessoa de fino trato. Hoje o nosso crente é urbano, acompanha a moda, é versado em BBB, novelas, não aporrinha os vizinhos com mensagens bíblicas e nem fica distribuindo Bíblias e folhetos. Tornou-se muito inteligente, pois prefere não somente o céu, mas também o melhor da Terra.

Apesar de tudo isso, os pastores e líderes divinizados fazem de tudo para demonizar o crente lembrando-lhe dos seus defeitos, mazelas e faltas. Lava o cérebro do crente martirizando-o quanto a sua falta de fé, oração débil, e compromisso financeiro sem coragem. Quanto mais demonizado é o crente, mais necessário se faz a presença de um líder divino. Muitos chamam esse tipo de violação de "abuso espiritual". Para Ken Blue, o "abuso espiritual acontece quando um líder investido de autoridade espiritual usa essa autoridade para coagir, controlar ou explorar um seguidor, causando-lhe ferimentos espirituais". ( Abuso Espiritual, p. 10).

E a grande arma do abuso espiritual e do autoritarismo pastoral é o "legalismo". Nossas igrejas estão cheias dele. É uma praga, uma peste que tem contaminado a muitos pastores e, como corolário, a seus crentes. O legalismo pode ser visto como "a expressão da compulsão de líderes na busca de segurança e previsibilidade. Pensam que se eles puderem fazer cumprir uma lista exaustiva de faça isso, não faça aquilo, conseguirão ter aquela segurança e previsibilidade pelas quais eles anseiam". ( Abuso Espiritual, p. 44). E, em muitos sentidos, têm conseguido. O crente parece não se importar em reter apenas a querela "vomitada" do púlpito de seu pastor (se é que poderia cair outra coisa), desde que esse alimento seja o suficiente para que se mantenha num estado de segurança existencial e dependência (demência) espiritual em que não tenha de decidir, sofrer nem tampouco pensar por si mesmo. Desse modo, o legalismo na igreja se retro-alimenta: o pastor necessita impor regras e fazer joguinhos espiritualóides com o crente a fim de manter-se no controle, e o crente precisa de um pastor que lhe diga exatamente o que, como e quando fazer, sempre é claro com o aval "espiritual" de que aquilo é bíblico (ainda que não seja, e muitas vezes não é) e representa a vontade de Deus.

Mas o legalismo não é algo novo, um produto desse tempo. No Novo Testamento vemos o quadro mais claro de quem eram seus conspícuos representantes: os fariseus, mestres da lei, escribas, e os judaizantes do tempo de Paulo. Não vejo Jesus sendo um pouco sequer indulgente com essa corja de "pastores". Pelo contrário, ele põe o dedo na ferida e aponta tremendas contradições existentes neles. Enquanto se apegam às suas tradições como carrapatos num cão, negam e subvertem o sentido da própria lei, que afirmam defender: "É bem isto, rejeitais o mandamento de Deus para guardar a vossa tradição... anulais a palavra de Deus com a tradição que vós transmitis" (Mc 7. 9, 13).

Isso me lembra Paulo quando escreve aos Gálatas, perplexo com a facilidade com que aqueles haviam se desviado da verdade do Evangelho, de sua vocação para a liberdade, para se render à escravidão da Lei, da justificação por esforço próprio. Ele diz: "De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos na Lei; da graça decaístes" (Gl 5.4). E, contra os judaizantes, os líderes que faziam aqueles cristãos tropeçarem, ele dispara: "Tomara até que se mutilassem os que vos incitam à rebeldia" (Gl 5.12). Tanto como em Jesus, não vejo em Paulo a menor comiseração ao se referir a esses líderes-abusadores do rebanho. Jesus compara essa corja aquela a qual Isaías se referia dizendo: "Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim; é em vão que me prestam culto, pois as doutrinas que ensinam não passam de preceitos de homens" (Mc 7. 6-7).

Um dos objetivos do pastor deveria ser o de gerar filhos na fé bem nutridos, maduros, que pudessem caminhar com as próprias pernas, sem necessitar de cabresto ou leitinho "espiritual" na boca; de tal modo que, num futuro não muito longínquo, pudessem debater com seu pastor de igual pra igual, sem hierarquia, não só sobre bíblia e teologia como sobre a vida de modo geral. É o mestre sendo alcançado e até superado pelo discípulo. Quimérico? No mundo de hoje, sim, infelizmente. Armadilhas do sistema eclesiástico, como observa Eugene Peterson: "Enquanto que a comunidade míngua, a ansiedade por liderar cresce, mas é comum essa liderança destruir a comunidade, reduzindo as pessoas às funções que desempenham. Quanto mais "eficientes" nossos líderes se tornam, menos vida em comunidade nós temos". ( O pastor desnecessário, p. 189).

Logo, esse crente moderno sofre de inanição espiritual, tornando-se cada vez mais oco, cujo fim do abismo ainda está longe de ser encontrado. Por ser um tolo e ignorante do projeto de Deus para a sua vida, ele permite que um outro exerça o controle sobre sua vida ao ponto de cegar o seu entendimento. Perde a autocrítica e, como num passe de mágica, deixa de existir. Não pode rebelar-se contra os ensinos do pastor-deus. Tem medo de ser castigado e de perder as bênçãos. Finalmente, não aceitando a dignidade ofertada por Cristo, apanha com as mãos cheias aquilo que o Cristo rejeitou da serpente quando foi tentado no deserto, quem sabe focado na "restituição" prometida, riqueza e prosperidade material – aberrações dessa época.

Na percepção de Michel Quoist: "À força de desejar os bens materiais, de lutar para obtê-los, de tentar usufruir deles o homem acaba por cair progressivamente na incapacidade de imaginar para sua vida outra finalidade que não essa. E essa é a tragédia de seu destino". Esse autor ainda acrescenta: "A riqueza e o poder material não são males em si; o mal consiste em acreditar que são a condição da verdadeira grandeza". ( Construir o homem e o mundo, p. 68, 70).

É preciso tomar cuidado sempre e exercitar o bom senso, o discernimento espiritual. Segundo Quoist, existe uma beleza diabólica que seduz, aprisiona e desencadeia a guerra ( Construir o homem e o mundo, p. 112). O crente deve precaver-se desse tipo de beleza que muitas vezes é estampada no rosto falso dos profetas modernos. A Bíblia orienta muito sobre isso, mas parece-nos que a essa orientação não faz efeito e o crente não atenta para ela. Veja, por exemplo, que Paulo, escrevendo a Timóteo, diz: "rejeita as fábulas profanas..." (1Tm 4.7). Ele ainda orienta seu discípulo "para advertir a alguns, que não ensinem outra doutrina" (1Tm 1.3). Existe, portanto, essa forte possibilidade de se ensinar algo que não tem nada com a Bíblia e com o Evangelho de Jesus Cristo. Mas se o problema se resumisse somente aos pregadores isso seria até fácil de ser consertado. Essa facilidade não existe porque, como dissemos, os crentes desejam e necessitam desse tipo de líderes. O mesmo Paulo escrevendo ainda a Timóteo diz: " Porque virá tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, tendo comichão nos ouvidos, amontoarão para si doutores conforme as suas próprias concupiscências; e desviarão os ouvidos da verdade, voltando às fábulas" (2Tm 4.3-4).

Essa concupiscência a que se refere Paulo é epithymia, que significa "desejo por aquilo que é proibido" e esse comichão nos ouvidos literalmente significa o "desejo de ouvir coisas agradáveis". Ou seja, aqui se aplica aquele ditado popular: "juntou a fome com a vontade de comer". O crente que passa pelo processo de demonização não é inocente, como muitas vezes ouvimos por aí. Ele sabe o que está fazendo. Todo líder ou pastor divinizado sabe a respeito dessa necessidade que o populacho evangélico tem. Assim sendo, entregará aquilo que mais se busca. Mas, como ainda diz Quoist: "O verme que se acha dentro da fruta, mais dia menos dia fura a casca e a podridão se espalha do interior para o exterior". ( Construir o homem e o mundo, p. 112).

Todavia, para nós, o resultado mais grave dessa trama é o largo sorriso do Diabo. Sorri ele porque vê a igreja perdendo a sua essência, a essência missionária. Analise o movimento missionário brasileiro e veja a perda daquilo que foi conquistado a partir dos anos 1970. A igreja aceitou o desafio de enviar missionários, aceitou o desafio de transformar a sociedade, de viver a utopia do Reino de Deus. E hoje? Hoje a igreja é motivo de chacota e largos risos por parte da sociedade. Pouca gente tem coragem de acreditar nessa igreja que aí está.

Por isso, cremos que antes de orar por um avivamento é necessário reformar a igreja. Deus precisa levantar homens e mulheres que não se rendam a esse jogo sujo e medíocre chamado por muitos de "evangelho", pois não se trata do Evangelho de Cristo. E não sendo o Evangelho de Cristo, você não precisa (nem deve) se comprometer com ele e nem se acovardar em denunciá-lo.



* Os autores são professores da Faculdade Teológica Sul Americana (www.ftsa.edu.br)




Fonte: www.vidaacademica.net

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